A obsessão está no dicionário
Por trás da firmeza
no Eurogrupo, há uma história na qual dívida e culpa assombram o inconsciente
coletivo
“No idioma alemão, a raiz das duas palavras é a
mesma: ‘Schuld’ significa culpa, e ‘Schulden’, dívida” Tobias Hentze Economista
As
negociações na Europa para salvar a Grécia de uma dívida apresentaram ao mundo
duas figuras emblemáticas. De um lado, desponta o despojado ministro das
Finanças grego, Yanis Varoufakis. Do outro, seu sisudo equivalente alemão,
Wolfgang Schäuble, reforça todos os estereótipos da dureza germânica —
sobretudo quando se trata da política de austeridade transformada na marca
registrada da chanceler Angela Merkel. E a chave para entender o porquê de
tanta disciplina financeira pode estar no dicionário. Quarta maior economia do
mundo e coração da zona do euro, a Alemanha vê dívida e culpa da mesma maneira.
No inconsciente alemão, ficar endividado significa ter feito algo tão ruim que
é passível de penitência.
—
No idioma alemão, a raiz dessas duas palavras é a mesma. “Schuld” significa
culpa, e “Schulden”, dívida — disse ao GLOBO o economista Tobias Hentze, do
Instituto de Pesquisas Econômicas de Colônia.
À
SOMBRA DOS ANOS 1920
O
horror à dívida, porém, vai além do léxico. Mais de cem anos após o estouro da
I Guerra Mundial, economistas se lembram das marcas deixadas pela República de
Weimar na psique do país. Os alemães não se esquecem dos dias de pobreza após a
assinatura do Tratado de Versalhes, que formalizou o fim ao conflito em 1919,
quando França e Reino Unido impuseram pagamentos draconianos à Alemanha como
compensação pela guerra. Os termos de paz exigiam que Berlim fizesse um
pagamento inicial às duas potências de US$ 5 bilhões — quase a metade do
Produto Interno Bruto (PIB) alemão à época. Seguiram-se meses de descontrole e
hiperinflação que, mais tarde, acabaram favorecendo a ascensão do nacionalismo
e do Terceiro Reich de Adolph Hitler. De repente, um dólar, que valia quatro
marcos, passou a valer quatro trilhões.
—
Desde a hiperinflação dos anos 1920, dívidas e preços altos são um pesadelo
para os alemães. Por décadas, os alemães estavam contentes com a estabilidade
do marco. As taxas de inflação se mantiveram baixas. Como isso ajuda os
devedores a pagarem suas dívidas e coloca credores em desvantagem, países com
taxas altas de inflação no passado, como Itália e Grécia, têm atitudes
diferentes das da Alemanha no quesito dívidas — avaliou Hentze.
Uma
geração mais tarde, a derrota de Hitler impôs novo revés aos alemães, que
acabaram vendo o país rachado pela Guerra Fria. E como os Estados Unidos
precisavam de um aliado forte frente ao comunismo soviético no centro da
Europa, a República Federal Alemã, o Oeste capitalista, assistiu nos anos 1950
ao que se chamou de Wirtschaftswunder — o milagre econômico.
—
O Plano Marshall foi essencial. As pessoas saíram da guerra muito pobres e
tinham que trabalhar muito para comer. Foi quando o governo introduziu o
conceito de Soziale Marktwirtschaft, a economia de mercado social, que permitiu
incentivos razoáveis às empresas, mas também aos cidadãos e suas famílias —
lembrou o economista.
VICIADOS
EM ECONOMIZAR
Os
alemães começaram a poupar. E apaixonaram-se pela prática. Em julho passado,
pesquisa da Associação dos Bancos Alemães indicou que 35% dos alemães entre 18
e 59 anos têm o hábito de guardar até € 100 por mês, e 25% se esforçam para
poupar até € 200. O motivo? Nada de construir patrimônio ou fazer compras
exorbitantes: 53% pensam em uma emergência — enquanto apenas 1% dos
entrevistados contaram que poupam para viajar.
Como
a inflação é inimiga dos poupadores, a ideia de reduzir taxas de juros e
injetar mais dinheiro na economia, postura adotada recentemente pelo Banco
Central Europeu (BCE), é aterradora a ouvidos alemães.
Se
guardar é preciso, em Berlim o desapego pelo consumo é tamanho que proliferam
nas redes sociais grupos de troca-troca, como o Free Your Stuff (Liberte suas
coisas), no Facebook. De roupas a móveis, há de um tudo — para o escambo.
Charge da Primeira Grande
Guerra:
Oficial francês impõe
onerosos termos de paz a soldado alemão
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