A homossexualidade em Portugal no período
histórico foi sobretudo dominada pela ideologia cristã da Igreja Católica
Apostólica Romana, que caracteriza a sexualidade como um acto exclusivamente
destinado a procriação, pelo que todas as outras actividades sexuais são vistas
como pecaminosas e contrárias a Deus. A partir do século XVI a Inquisição
encarregou-se mesmo de investigar, julgar e condenar à fogueira a sodomia. Esta
visão moralista da sexualidade manteve-se até finais do século XX, apesar da
descriminalização que, entretanto, ocorreu, época em que a grande maioria dos
homossexuais ainda preferia esconder-se aos olhos da sociedade.
As Descobertas:
As viagens marítimas de longos meses e a
reduzida presença de mulheres a bordo, foram factor determinante para aumentar
a frequência de ocorrência de casos de homossexualidade a bordo das naus das
Descobertas, apesar da forte repressão. O aumento da homossexualidade em
ambientes fechados é um fenómeno conhecido, que se relaciona com o isolamento
em relação a membros do sexo oposto, e está presente também, por exemplo, nas
prisões. A punição para os casos de homossexualidade que eram descobertos ou
denunciados podia passar pelo desembarque no primeiro porto onde o navio
aportasse, chegando mesmo nos casos mais extremos à execução do
"pecador".
A informação que nos chegou tem origem nos
relatos dos padres e capitães da naus, como o caso do capitão da nau Esfera em
viagem para a Índia em 1548, D. João Henriques, que relatava ao rei que um tal
Diogo Ramires, castelhano, "cometera pecado de sodomia" com dois
criados de um passageiro nobre. Após queixa dos criados o indivíduo foi
executado.[21] Em 1620, em carta do Rei para o seu vice-rei na Índia, podemos
ler: "Eu sou informado que nas naus de viagem vão deste Reino muitos
meninos que os soldados logo levam para suas casas quando ali chegam as ditas
naus, e que alguns usam mal deles".[22]
Já em terra, tanto nas costas de África como
no Brasil, os navegadores e, posteriormente os colonos, foram defrontados com
costumes e códigos de moral social muito diferentes daqueles a que estavam
habituados no seu país: "Os Tupinambá, não contentes em andarem tão
encarniçados na luxúria naturalmente cometida, são muito afeiçoados ao pecado
nefando, entre os quais se não tem por afronta. E o que se serve de macho se
tem por valente e contam esta bestalidade por proeza. E nas suas aldeias pelo
sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres
públicas."[23] ou nas costas da Guiné, onde era frequente o "vício do
bugre", sendo que entre algumas etnias, para além de praticado e
socialmente aceite, era até divinizado. [24]
A acrescer aos hábitos diversos dos naturais
das terras descobertas e à pressão sexual causada por muitos meses de isoladas
viagens por mar, começou a verificar-se a chegada ao Novo Mundo de degredados
condenados por sodomia. O receio de generalização de práticas homossexuais,
quando a pressão política para colonizar - que implicava não só criar família e
gerar o maior número de filhos possível, mas também lutar
"virilmente" pelo território conquistado - era enorme, levou o Rei,
no regimento de instalação das Capitanias, em 1532, a outorgar autoridade aos
capitães-mores para condenar à morte, sem necessidade de autorização prévia da
Metrópole, apenas aos culpados de 4 crimes muito graves: traição e aliança com
os índios, heresia, falsificação de moeda e sodomia. A possibilidade que os
colonos "machos" brancos procurassem conforto sexual com índios ou
escravos, reduzindo a sua autoridade e fomentando a ousadia nos oprimidos para
se rebelarem, fez com que a homossexualidade fosse ainda mais reprimida nas
novas colónias que em Portugal.
A Santa Inquisição:
De 1536 a 1821 a Santa Inquisição, ou o
Tribunal do Santo Ofício em Portugal reprimiu a sodomia, "o abominável
acto nefando" ou o "nefando pecado". A sodomia era equiparada
pela Inquisição aos piores crimes, como a heresia, sendo que o parceiro
passivo, na relação, era particularmente penalizado, o que é consistente com um
certo "machismo" que também prevalecia nessa altura. Já os actos
sexuais entre mulheres eram considerados menos graves, tendo sido mesmo
descriminalizados em meados do século XVII. No total, mais de 4000 pessoas
foram denunciadas, cerca de 500 presas e 30 queimadas, [25] sendo que várias centenas
foram condenadas a desfilar publicamente em autos de fé e a seguir torturadas
ou exiladas. Os arquivos da Inquisição de Lisboa sobreviveram em grande
quantidade e podem hoje ser consultados na Torre do Tombo, [26] pelo que existe
bastante informação sobre as práticas homossexuais da época, a forma como eram
vistas pela sociedade, e julgadas e condenadas pela Inquisição. Muitas das
vítimas de perseguição por sodomia da Inquisição eram homens pobres, muitas
vezes jovens, que recorriam a todo o tipo de esquemas, incluindo a prostituição
masculina, para sobreviver. ( Grifo meu)
Outros parecem ter praticado actos
homossexuais apenas conjunturalmente: sendo a virgindade das mulheres solteiras
fortemente defendidas, os homens jovens recorriam a sexo com outros homens
enquanto solteiros, deixando a práctica após o casamento. Há referências a
lugares, como a Ribeira das Naus, onde homens se encontravam com outros homens,
e há ainda menção a um espectáculo de diversão pública, que seria hoje chamada
de show de travestis, a dança dos fanchonos.[27] [28] Como escreveu Isabel
Drumond Braga:[29] "A sua (dos fanchonos) identificação era auxiliada pela
maneira extravagante como se apresentavam, o uso exagerado da cor, os elementos
femininos nas vestes, as maquilhagens, o recurso à depilação e o uso de cabelos
longos com madeixas e franjas." ( Grifo meu)
Dos registos da Inquisição constam também
exemplos das mais antigas cartas de amor de sodomitas para os seus amados que
sobreviveram em Portugal, como as assinadas pelo sacristão da Igreja Matriz de
Silves (Portugal), no Algarve, um tal Francisco Correia Neto (a
"Francisquinha") que foi denunciado à Inquisição pelo seu vigário, ou
as duas cartas de 1652 do padre António Antas Barreto, de Barcelos, a um seu amante,
que foi acusado por um frade como "fanchono, somítigo (sodomita) e puto
agente (activo), dormindo com um moço que mandou vir de Guimarães… conhecido
como o frade rabista"[30]
[20] Daniel Eisenberg, 2004, Efebos y
homosexualidad en el medievo ibérico acedida em 30 de Abril de 2007
[21] "Documentação para a História das
Missões do Padroado Português do Oriente", compilação de António da Silva
Rego, Lisboa, Agência Geral das Colónias, vol. 4, 1950, pp. 82-83
{22} Documentos Remetidos da India ou Livros
das Monções, Lisboa, INCM, vol. 6, 1974, pp. 450-451
[ 23 ]Luiz Mott, "Relações Raciais
entre Homossexuais no Brasil Colonial", Revista de Antropologia,
Univeridade de São Paulo, vol. 35, 1992, pp. 169-90.
[ 24] Processo da Inquisição de Lisboa n.º
352, Arquivo Nacional da Torre do Tombo
[25] Luiz Mott, A Inquisição e a repressão à
Homossexualidade no mundo luso-brasileiro Seminário em 21-02-2005 do Centro de
Estudos Sociais da Universidade Federal da Bahia, acedido em 21-04-2008
[26] Os 17.980 processos existentes vão ser
digitalizados a partir de 2008, pois segundo o director do Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, Silvestre Lacerda, estes "são os mais consultados e mais
procurados por investigadores nacionais e estrangeiros" Público de
19-02-2008 acedido em 21-04-2008
[27] fanchono eram o termo de calão que
designava os homens que procuravam satisfação sexual com outros homens;
usavam-se derivativos do termo, como "fanchonice"
[ 28] glbtq, a enciclopédia on-line
[ 29] Isabel Drumond Braga, "Ser
Travesti em Portugal no século XVI", Revista Vértice, 2.ª série, n.º 85,
Lisboa, 1998, pp. 102-105
[ 30] Amílcar Torrão Filho, "Tríbades
galantes, fanchonos militantes: homossexuais que fizeram história",
Edições GLS, São Paulo, 2000, ISBN 8586755249
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